“Erguer-se-á povo contra povo e reino contra reino, e haverá fomes, pestes e terramotos em
vários sítios. Tudo isto será apenas o princípio das dores.” S. Mateus, cap. 24.
Virou-se repentinamente para a multidão que o vaiava, a uns metros do paquete que o levaria ao exílio, e gritou como nunca, silenciando as aves e o vento galerno, petrificando os homens e as mulheres com as suas palavras, dizendo:
– Podes rir, homens, podeis aviltar-me mas ficais sabendo que a noite voltará a cair nesta terra amaldiçoada que só teve momentos felizes com a chegada de Nguni. E hoje, corjas de assassinos e cobardes, ousais achincalhar-me com toda a força dos pulmões rotos que tendes. Mas ficai sabendo que o vento trará da profundeza dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, (…). O ódio alastrar-se-á de família em família. Os galos não se meterão com as galinhas da vizinha e os ratos dividir-se-ão por casas e roerão os bens de uma só família ao longo de gerações e gerações. E aí, não terão coragem de erguer a cabeça.
Quando Ngungunhane falava à multidão que o vaiava, uma mulher, sem aparência de gravidez,
teve uma criança sem olhos nem sexo. Dois homens tiveram um colapso cardíaco. E petrificados que estavam com a palavra de Ngungunhane, creio terem sido pouco os que viram. A mulher não gritou, não. Devia ter aberto a os olhos e a boca antes de desmaiar, e quando deram por ela já estava morta.
– Estes homens que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barrulho das suas armas e o chicote com o comprimento de jiboia. Chamarão pessoa por pessoa, registando em papéis que enlouqueceram e vos aprisionarão. Os nomes que vêm dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo e sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos vossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem.
Ditas estas palavras finais Ngungunhane virou-se e caminhou em direcção ao navio, acompanhado pelas mulheres e o filho e outros homens. Subiu as escadas sem voltar uma única vez o rosto. Desapareceu no interior do navio. Depois de o barco se perder no mar ouviu-se um canto a abrir o céu e a terra. Ngungunhane desapareceu. A seca invadiu essas terras, a colheita foi má. Maguiguane tentou, em vão, revoltar-se contra o colonialismo português. O império desabou para todo e sempre. O colonialismo português venceu.
Ungulani Ba Ka Khosa
(Adaptado)