I PARTE
Maxwelakuhanya! U ta sala u psi vona. (Nasceste tarde! Verás o que eu não vi.)
Tudo dorme. Até os ramos tenros das árvores magras não balançam, estãosonolentos. Uma silhueta desenha-se no escuro, mirrada, cansada, mais negraque a cor do carvão. Sianga sente o peito comprimido, o ar falta-lhe. Abandona oconforto da cama e procura o fresco da madrugada. Não sofre de doençaspulmonares não, que nessa coisa de doença é homem rijo. Olha para as quatrodirecções. Nos cantos do horizonte o manto negro se destapa. A frescura do ararrefece-lhe os olhos entumescidos de insónia e pesadelos. De corpo encostadoao tronco da figueira grande, Sianga abre a boca e pragueja numa expressão dedesalento.
Sianga dialoga com os defuntos. Faz oferendas para acalmar a sua fúria.Enquanto fala, vai espalhando sobre o chão o milho, a mapira e uma boa porçãode rapé e aguardente. A voz vai ganhando maior êxtase.Minosse preocupa-se. Uma prece aos defuntos no final da madrugada é coisa muito séria. A curiosidade impele-a a aproximar-se do marido para conhecer osmotivos da prece matutina. Dá uns passos. Recua. O temperamento do marido émais azedo que todos os limões do mundo. Lamenta-se. Regressa ao leitopreocupada e acaba por adormecer.Sianga passeia os olhos no céu cinzento que clareia. Sonha. Divaga. As mãos trémulas procuram o frasco de rapé amarrado na cintura por uma corda de sisal.Abre-o. Deposita o seu conteúdo na palma da mão, um a um, os grãos do divinopó.
Um burro zurra e outro responde. De súbito, os pássaros despertam numalarido sufocante. A galinha-mãe, cacarejando, arrasta os recém-nascidos para amarcha do dia. Um raio de luz risca o céu e, de repente, a noite se desfaz em dia.Enquanto Sianga saboreia o delicioso rapé, o galo maluco precipita-se sobreas ofertas dos defuntos e abocanha todos os grãos de milho e mapira.
Xô, xô, suca, seu chit — vocifera Sianga.
Os galos são tolos, podem ser perdoados, mas acontecer uma coisa daquelas num momento solene tem significado. Os defuntos não aceitam a oferta muito menos a conversa.Ela desperta. A chamada repete-se e ela tapa os ouvidos. Abandona a cama. Espreita o marido pelas fendas das paredes decaídas. Vê, nas proximidades, um bando de rapazes movimentando-se rápidos de cabeças erguidas ao céu, saraivando fisgadas contra um bando de pássaros em pleno voo. Os gritos dos meninos em combate confundem-se com os grasnidos dos corvos. Uma das aves traça espirais em queda acompanhadas pelos hurras dos vencedores. Hoje haverá petisco, afirmam eles. Mas o povo diz que os corvos não se comem porque cheiram mal e dão muito azar. Preconceitos dos tempos da fartura. Agora o lema é: aquilo que não te come, come-o tu. Sianga ausenta-se dos movimentos da vida, aprisiona-se no seu mundo, pensa, repensa e rumina rabugices.
A agrura das palavras impele Minosse a sentar-se sobre as nádegas porque asforças lhe faltam. Dos olhos acciona faróis de fogo com que fulmina o homem.Inútil. Ele é invulnerável. Minosse baixa a cabeça e, com a palma da mão,acaricia o dorso do chão. A terra está seca e teimosa como uma burra, a ponto derecusar-se a levantar uma nuvenzinha de poeira. Os olhos embaciados passeiamna planície deserta à procura do refúgio da alma. As cabanas dispersas na aldeiaperderam os biombos de ervas que preservam a intimidade de cada lar. Nos céusreina o verde inútil nas copas das árvores. A mente de Minosse trabalha nadescoberta de novas fórmulas de sobrevivência. As folhas do cajueiro, dafigueira e da mangueira não se comem.Minosse enfrenta o marido com fúria de fêmea. Os olhos dela são o céu inteiro desabando em catadupas de fúria.Minosse deixa-se vencer pela angústia. Murmura. O desabafo é uma coisa louca. Umas vezes é tímido, outras é ousado. Não gosta da solidão nem da prisãodo peito. Abandona o profundo e corre na estrada de ar, invade os tímpanosalheios e encrava-se no sentimento de outrem.
Minosse monologa em voz alta.Em poucas palavras resume a sua trajectória de esposa de um velho tonto. Falapara si e para o ar, quem quiser escutar que escute.Minosse levanta-se e caminha para a palhota. Pára na entrada e respira o cheiro do mundo. O céu sobre a cabeça toma-se mais azul à medida que o Solatinge a altura das palmeiras. O cinzento é uma miragem matinal e mantém-selá no guemetamusse onde o céu abraça a terra e as mulheres mais respeitosas domundo pilam de joelhos. Chegou a perdição de Mananga. Já não há remédio quesirva; nem Deus, nem espíritos, nem defuntos. A terra abre violentas fendasávidas de água. Será necessário desabar o céu inteiro para dar de beber à terra eaos homens com ela.
Terá agrande maçada de recriar de novo o Licalaumba e a sua companheiraNsilamboa mas, antes disso, será necessário reinventar a paisagem original,trabalho que ele pode evitar enviando alguns grãozinhos de chuva.A cabeça de Minosse abandona a fantasia. A mão direita desenha riscos nochão com a vassoura de ramos que afasta as folhas secas para o canto do lixo. Ochão levanta uma furiosa nuvem de pó, abafando a respiração de quem aprovoca. Ergue-se e espirra com violência. A voz do parceiro chama combenevolência.Faz má cara mas o coração delira, contente. Ser chamada pelo nome do filho mais querido é coisa boa. É um abraço, um sorriso, é reconciliação. Larga avassoura de ramos, caminha segura e ajoelha-se perante o seu senhor.Senta-te, mãe de Manuna, que a conversa é longa. O teu marido é umvelho tagarela, deves perdoar. As amarguras da vida azedam-me o espírito,querida minha. Preciso dos teus conselhos, do teu conforto. Passam-se coisasmuitos estranhas nas minhas noites. Diz-me uma palavra amiga, rainha dasminhas agonias.
Minosse sorri. Cerra os olhos com deleite de gata. As palavras docesmassajam-lhe o coração como carícias de sol. Pela primeira vez se sente mulherdo seu senhor, awêêê!… Pela primeira vez Sianga reconhece o valor da suapresença. Lobolada na adolescência, jamais conheceu o prazer da intimidade e ocalor de um sorriso de amor. O coração envelhecido de Minosse mergulha numgalope desenfreado como uma adolescente enamorada. A alma em festa bailanas nuvens a cantiga de roda. Porque a mulher que não guarda segredo nãopenetra nos mistérios dos homens. Hoje, Minosse entra nos aposentos do seusenhor, confia-lhe as amarguras, é uma mulher madura, está de parabéns apobre Minosse.
Cumpriu-se o vaticínio dos deuses, a predição dos antigos. Do pó te fizeram homem. Enterrado nas entranhas da terra ao pó voltarás. Somos agora cacos da bilha partida donde a água se espalhou e regou a terra. A dor é irmã gémea do rato. Rói o cérebro e não pensas. Rói a luz para deambulares nas trevas, desnorteia. Mas é pior do que o rato. Mas a dor não actua impunemente. Dentro de cada homem há soldados nobres que a combatem. Depois de muitas lágrimas surge do íntimo uma voz amiga que aconselha: não bastam as lágrimas para combater a tristeza, é preciso resistir e expulsar a maldita.
Minosse reanima-se com a notícia do marido vivo, mas não se alegra. Faz umbalanço macabro do que acaba de acontecer. O seu filho Manuna mata Wushenie o filho de sete meses que esta incubava no ventre. Wusheni mata Manuna numacto de desespero. Sianga crucifica o povo. O povo crucifica Sianga. Os netos foram mortos e as noras capturadas. Dambuza, seu genro querido, flutua no ar,suspenso por um cordel na copa do grande cajueiro.
II PARTE
A sikunisikolipsa lona. (Cada dia tem a sua história.)
Há muitos e muitos sóis, as mulheres cantavam estes versos velhos como aidade da terra, com vozes de fartura nas festas das colheitas. Os temposmudaram. Hoje, outras mulheres cantam os mesmos versos com vozes deamargura na época de tortura.Canção desespero, canção esperança, canção dúvida, canção certeza. Versos ora directos ora indirectos, subtis, sinuosos, tão sinuosos como a estrada dasgaivotas. Nasceste tarde, verás o que eu não vi.O arrefecimento da terra virá com a chuva que apagará o fogo das lançasdos cavaleiros do céu. Nesse tempo, a força das mãos fará renascer das veias arazão da existência, mas quando? Os homens estão quase resignados e definhamao gosto do diabo. Fugir para onde? Os caminhos para a luz estão armadilhados, opobre ser humano gira à volta de si mesmo no interior da armadilha tecida pelosseus semelhantes. Resta apenas um caminho: assinar o divórcio com a vida etransformar-se em poeira que o vento fará levantar, até ao farfalhar edénico daspalmeiras.
Cessaram os choros. O terror cedeu o lugar à passividade e o povo deixa-seconduzir como cordeiros para o último destino onde não há princípio nem fim. Aslágrimas já não são líquidas, cristalizaram, riscam, sangram.O povo de Mananga rasga o arco e salta. Rasga o universo do ovo com a coragem do pinto ao vigésimo primeiro dia, a vida é mais verdadeira do lado delá. A partida tem sabor a areia solta, a sede, a poeira seca, o Sol é demasiado forte e o calor destila. Caminham. Os corpos vivos marcham como sepulcros, comoduendes, como sombras mortas. Arrastam consigo todos os haveres que lhesrestam, para o novo mundo, para o recomeço da vida ou para o prolongamentoda agonia. O dorso da terra é seco, quentee áspero, como o vento, como o homem. A terra recebe o pisoteio imperturbado,com a mesma insensibilidade dos homens que caminham sobre ela. Cada passoem frente é um coval de areia em cada sonho, uma morte viva para a terra quedeu a vida e o mundo.Ninguém olha para trás, todos desejam esquecer o passado. Tão-pouco olham para a frente.
Os grandes olhosavermelham-se com uma névoa de sangue. Fulmina a esposa com olhos loucosderramando sobre ela um ódio mortal, porque o nascimento daquele filho podesignificar a sua morte caso o inimigo deambule por aquelas paragens. Move asmãos nervosamente. Os dedos tremem de desejo intolerável de se enterrar nopescoço magro da mulher que geme, até o corpo sucumbir à força dos dedosestranguladores no tapete de relva. E a maldita criança sucumbiria no ventre damãe. Depois fugiria para o Monte onde iria construir uma nova família, e talvezaté se casasse com uma mulher mais bonita e mais nova do que aquela. Esboçaum sorriso louco, pavoroso, enquanto o suor lhe alaga a fronte, o peito e o cabelo.Os gestos urgentes das matronas despertam-no do sonho diabólico. Ergue os olhospara o céu suplicando a misericórdia-divina, ele ainda é demasiado jovem paramorrer.
Quanto à criança que está quase a nascer, que morra, porque amanhãele poderá fazer outra com uma mulher mais linda e mais gostosa. A angústia ésubstituída pela surpresa e o pânico. Abre a boca apavorado com o dedoapontado no ar. Vê pássaros lá no horizonte. São enormes, são velozes, parecemabutres. Fazem um ruído ensurdecedor e caminham em grupo de cinco. Voamcada vez mais baixo e dirigem-se em bando para as mesmas bandas. Asmatronas esquecem o parto por alguns momentos e olham para o céu. Não sãopássaros, são aviões de combate, agora voam por cima das suas cabeças maisameaçadores que os abutres. Têm os canos apontados para a rega da terra comfluidas lavas de pólvora e dirigem-se para o sol-poente. Deixam para trás umtufão que arranca os ramos altos dos baobás e mergulham a mata numa onda deagitação fantasmagórica.Os homens meio sonolentos sacodem as cabeças para afastar o terrível pesadelo. Esfregam os olhos tentando enxergarcom clareza e vêem apenas o balanço mortal das árvores e folhas, porque oshelicópteros zarparam com a velocidade da estrela-cadente. Levantam-se etentam fugir, mas a voz de Sixpence os detém.
Os recém-chegados ainda se sentem mortos, não têm a consciência da própriapresença. Mas há uma dor insuportável que lhes sai do coração, da alma, dosossos, e do sangue. Sentem um esgotamento profundo, que testemunha a suapresença no reino dos vivos. Afinal de contas a morte é uma coisa boa, elesreconhecem. A vida que tanto defendem é algo que amargura, que oprime. Amorte verdadeira é mais saudável porque acaba com todos os tormentos.Olham para todos os lados e identificam: uma terra nova com gente nova, oque significa uma vida nova, o recomeço de tudo. E divagam no mar daincerteza, da insegurança, talvez o dia de amanhã seja mais amargo do que o deontem ou de hoje. Não falam. Olham-se apenas. Guardam um silêncio pesado,profundo, porque estão no velório da sua própria tristeza. À sua volta a naturezavibra em mais um ritual de saudação ao sol enquanto os raios de luz penetramdeleitosos nas profundidades das águas do riacho. O vento corre. As folhas caeme as que se deitam no riacho flutuam sob as minúsculas vagas e deixam-seembalar porque caminham para o apodrecimento total.
Os antigos residentes aproximam-se. Saúdam. Confortam. Oferecem umavelha peça de roupa a um e a outro, eles também não têm muito. Seriademasiado injusto deixar aqueles homens nus na presença das crianças, e deresto sentem que é seu dever ajudar. As mãos necessitadas recebem de cabeçabaixa, a necessidade conduz à humilhação.A pouca e pouco os recém-chegados destravam a língua e contam a sua história que arrepia quem a escuta, e corre de boca em boca até atingir o limiarda celebridade. Sixpence, o homem que conduziu o povo, toma um lugar nopedestal dos ditos do povo e torna-se conversa da machamba, do rio, da cozinha emesmo da cama dos casais felizes. As mulheres fogem da vigilância dos maridose procuram o herói esfarrapado para ouvir-lhe a voz e trocar sorrisos sem osolhares incómodos dos curiosos.Passa um dia e outro dia e o moribundo dá os primeiros sinais de melhoras.
Mara fica maravilhada com os resultados dos seus cuidados e trata o doente commaior devoção. Sente a sua vida envolvida com a história do lendário herói, coma sua luta, os seus sacrifícios e sonhos perdidos. Negligencia a enxada e o pilão.Esquece os ciúmes do noivo e as birras da mãe, que o milho espere e o noivo sedesespere, que a fogueira fique por acender porque agora ela é mãe do filho quenasceu da morte. Tapa os ouvidos para as palavras que a repreendem, sente queestá a viver o maior sonho do mundo.Descem do Poente os cavaleiros do Apocalipse. São dois, são três, são quatro, o povo inteiro cava sepulturas. O quarto, o terceiro e o segundo já aterraram. Oprimeiro está quase a aterrar. O seu cavalo reverbera no Céu ofuscando a vista,gira, balança-se, rodopia, ginga, toma a posição de aterragem, os pés do cavaloestão a um milímetro do chão, o cavaleiro nobre sorri satisfeito. Deus, tendepiedade deste povo inocente! Perante o espanto do galhardo cavaleiro, o cavaloencolhe os pés, bate as asas para o alto e sobe, sobe, acabando por ficar suspensonas nuvens. E a aldeia do Monte recebe o seu baptismo de fogo.
Veja!
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Bibliografia
CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Colecção ondas do indico. 3ª edição. 2010.