Vida e Obra
Pouco se sabe sobre a vida de Gil Vicente, autor de Auto da Barca do Inferno. Ele teria nascido por volta de 1465, em Guimarães ou em outro lugar na região da Beira. Casado duas vezes, teve cinco filhos, incluindo Paula e Luís Vicente, que organizou a primeira compilação das suas obras.

No início do século 16, há referência a um Gil Vicente na corte, participando dos torneios poéticos. Em documentos da época, aparece outro Gil Vicente, ourives, a quem é atribuída a Custódia de Belém (1506), recipiente para exposição de hóstias feita com mais de 500 peças de ouro. Há ainda mais um Gil Vicente que foi “mestre da balança” da Casa da Moeda. Alguns autores defendem, sem provas, que os três seriam a mesma pessoa, embora a identificação do dramaturgo com o ourives seja mais viável, dada a abundância de termos técnicos de ourivesaria nos seus autos.
Sendo uma Ponte entre a Idade Média e a Renascença (Humanismo), a obra de Gil Vicente foi de importância decisiva na criação do teatro ibérico, inclusive porque nos seus diversos autos, escritos em português e castelhano, foi recolhida parte significativa da poesia tradicional de várias nações espanholas. A sátira vicentina toca fundo nas feridas sociais da época e é contrabalançada por um elevado pensamento cristão, expresso em todas as peças: as de inspiração medieval e as de carácter satírico. Os estudiosos apontam exactamente essa bipolaridade como uma das melhores características do autor, que criou um teatro cuja força expressiva foi suficiente para dar vida à chamada Escola Vicentina, de grande influência no século 16 e que permanece actual até hoje.
Teria começado a escrever intempestivamente, por ocasião do nascimento do futuro dom João 3º, filho dos reis dom Manuel e dona Isabel. Penetrando na câmara real a fim de, em nome dos servidores do paço, saudar o evento, declama em espanhol o Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação). Causa tão boa impressão que lhe pedem volte a recitar o monólogo nas festas de Natal. Quando chega a data, ele apresenta, contudo, outra peça, de tema semelhante: o Auto Pastoril Castelhano. Como o êxito não fosse menor dedica-se, daí por diante, a escrever e representar teatro para entretenimento da realeza e da fidalguia, sem abandonar suas outras funções junto à Corte. O talento especificamente dramático de Gil Vicente permitiu-lhe criar formas teatrais diversas quase só a partir da vida que o rodeava formas que deslumbraram seus contemporâneos.
Características
Segundo António José Saraiva, o enorme sucesso das obras dramáticas de Gil Vicente vem da sua extraordinária vivacidade mimética e do talento para criar aquilo que é especificamente dramático: situações e personagens.
Duas grandes forças atuam no teatro vicentino: a paródia (nem sempre satírica), para fazer rir, de vários tipos sociais, em geral estereotipados; e a preocupação didático-religiosa, que se destina a transmitir a doutrina da Igreja Católica, especialmente o mistério da Encarnação e a luta entre o Bem e o Mal. Esses personagens e essas forças estão unidos no Auto da Barca do Inferno, quando vários tipos morais e sociais têm de atravessar numa barca o rio da Morte. O Diabo, a personagem que interpela e faz falar todas as outras, põe à prova os diversos tipos, denunciando-lhes as faltas e a hipocrisia.
O que não se encontra em Gil Vicente é o conflito íntimo, o drama interior de quem se encontra dividido, tendo de escolher entre dois extremos, pois na obra vicentina não há caracteres individuais, mas apenas tipos de uma só peça, tanto sociais como psicológicos. Seu teatro, no entanto, é denso e variado. Escrevendo para um público exigente, que detinha nas mãos as rédeas do poder, nem por isso Gil Vicente deixou de impor-se como dramaturgo.
Glossário e Enciclopédia:
Ourives: Pessoa que fabrica, conserta ou comercializa objectos de ouro, prata ou pedras preciosas.
Autos: Composição dramática de cunho moral ou pedagógico.
Monólogo: Cena de peça teatral escrita para representar um só ator, que se dirige ao público ou fala consigo próprio.
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