Conteúdos
A Dicotomia Público/Privado
Da tradição ocidental deriva uma dicotomia, que remonta ao Direito Romano, que é central no debate sobre o Estado e a Administração Pública: a dicotomia entre público e privado. Geralmente definições dicotómicas carregam elevado grau de arbitrariedade, na medida em que se pretende dar conta de todo o universo de possibilidades.
Dessa forma, é muito comum admitir-se a contraposição rígida, e excludente, entre a esfera pública e a esfera privada. Um termo exclui o outro, e ambos recobrem a totalidade do existente e do imaginável. No mundo real, nem sempre as definições são tão claras quanto no mundo dos conceitos. Intuitivamente, associa-se, sem dificuldade, o Estado à esfera pública, e a empresa capitalista à esfera privada.
No entanto, à medida que se vai distanciando dos casos extremos, a classificação parece não ser tão óbvia. Por exemplo, em que esfera deve-se situar a empresa pública? E os partidos políticos? Antes de nos precipitarmos em responder a essas perguntas, examinemos os componentes de cada um dos termos, tentando identificar o que é fundamental em um e em outro.
A definição da esfera pública é uma construção, ao mesmo tempo, intelectual e colectiva. Na substância ou na materialidade das coisas, não há nada que inequivocamente situe um bem ou um serviço na esfera pública.
Esta é, na verdade, resultado de uma convenção social específica. Integra a esfera pública aquilo que o conjunto da colectividade, e não apenas uma parte dela, pactua, explícita ou implicitamente, ser de interesse comum a toda colectividade. Tudo aquilo que uma colectividade, também chamada de povo, em um determinado momento de sua história, estabelecer como interesse ou propriedade comum integrará a esfera pública, ficando todo o restante adstrito à esfera privada. Conclui-se, portanto, que não há nada que seja intrinsecamente público nem intrinsecamente privado, já que um e outro resultam de convenções colectivas.
A clara separação entre esfera pública e privada é, na actualidade, a marca distintiva das sociedades ocidentais em relação às sociedades tradicionais. Dessa separação decorrem todas as demais diferenciações relevantes: a existência de um Direito Público e de um Direito Privado; a separação entre Estado e sociedade civil; a delimitação dos poderes dos governantes em relação ao conjunto do Estado e aos cidadãos. Nessas sociedades, a forma de administração do Estado também é substantivamente distinta da forma de administração nas sociedades tradicionais, onde predomina a administração patrimonialista.
Esse tipo de administração 14 ENAP implica uma forma de gestão dos negócios públicos como se fossem negócios privados dos governantes. Nas modernas sociedades contemporâneas, a forma de administração predominante é a burocrática, caracterizada por uma série de procedimentos administrativos, baseados na legalidade dos actos, na impessoalidade das decisões, no profissionalismo dos agentes públicos e na previsibilidade da acção estatal
A esfera pública é por excelência a esfera de acção do Estado, ao passo que a esfera privada é a de acção da sociedade civil. O Estado moderno exerce diferentes funções de interesse da sociedade, as quais são funcionalmente distribuídas entre diferentes instituições.
De acordo com Montesquieu, o Estado possui três funções fundamentais, sendo todas as suas acções decorrentes de uma, ou mais, dessas funções: a função legislativa, que é a de produzir as leis e o ordenamento jurídico necessários à vida em sociedade; a função executiva, que é a de fazer cumprir as leis; e a função judiciária, que é a de julgar a adequação, ou inadequação, dos actos particulares de execução das leis existentes.
Tendo em vista evitar que o Estado abusasse do seu poder, tornando-se tirânico com os seus súbditos, formulou a teoria da separação funcional dos poderes, que deu origem à separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tal como os conhecemos hoje.
A primazia do público sobre o privado
O Estado e suas instituições são as únicas instâncias de representação do todo em uma determinada sociedade. As demais instituições representam apenas partes. Daí a primazia do público sobre o privado. A relação entre Estado e sociedade civil é, portanto, uma relação entre desiguais.
O Estado tem primazia sobre a sociedade civil. Isso não quer dizer que ele possa, sob qualquer pretexto, intervir na sociedade civil. O conceito de primazia significa assimetria respaldada pelo Direito, e não arbitrariedade. A primazia do público sobre o privado revela-se também na precedência do primeiro sobre o segundo. O Estado determina, por intermédio do exercício de sua função legislativa, a esfera do poder público; depois, por exclusão e residualmente, é determinada a esfera privada.
Uma vez determinada a esfera privada, os indivíduos e suas associações particulares podem nela fazer tudo aquilo que a lei não proibir ou deixar de fazer tudo aquilo que a lei não obrigar. A essa autonomia dos indivíduos na sociedade civil chama-se liberdade negativa. O Estado e os agentes públicos, contrariamente aos cidadãos na sociedade civil, não gozam de liberdade negativa.
A rigor, a expressão liberdade de acção não é aplicável ao Estado e seus agentes, que só podem e devem fazer aquilo que a lei obrigar. Normativamente, a primazia do público sobre o privado funda-se na contraposição entre interesse colectivo e interesse individual. O bem comum não resulta da soma dos bens individuais, razão pela qual os interesses individuais (privados) devem ser subordinados aos interesses colectivos (o bem público).
A Fronteira entre o Público e o Privado
A primazia e precedência do público sobre o privado fazem com que a fronteira entre um e outro seja móvel. Ora o Estado avança sobre a esfera privada, ora recua. Existem, porém, algumas actividades consagradas como exclusivas do poder público, outras em torno das quais não existe consenso e outras ainda que suscitam os mais vivos embates. Entre as acções consensualmente consideradas como exclusivas do Estado encontram-se, por exemplo, as actividades legislativas e judiciárias.
As prerrogativas do Estado sobre os agentes privados
O Estado goza de diversas prerrogativas sobre os agentes privados, todas elas derivadas da assimetria existente entre Estado e sociedade civil. Existe toda uma hierarquia de prerrogativas que, exercidas pelos devidos agentes, vão do poder soberano, que tudo pode, constituído por representantes de todos os cidadãos reunidos em assembleia constituinte, ao poder limitado em diferentes graus.
A Constituição brasileira de 1988 previu alguns mecanismos para a alteração dessa relação e da própria forma do Estado. No Ato das Disposições Transitórias, foi previsto um plebiscito e uma revisão do texto constitucional em 1993. Neste ano, o eleitorado, em plebiscito, decidiu-se pela manutenção da República e do Presidencialismo, ocasião em que poderia ter escolhido a Monarquia e o Parlamentarismo.
Fora desses mecanismos, o Poder Legislativo pode alterar a Constituição, respeitando as chamadas cláusulas pétreas que não são passíveis de supressão, como a forma federativa e republicana do Estado. As Emendas à Constituição são possíveis mediante a sua aprovação por maioria qualificada, isto é, 3/5 dos deputados federais e 3/5 dos senadores, em votações em dois turnos em cada uma das duas casas do Congresso Nacional.
Os Direitos do Cidadão e os Deveres do Estado
Todo serviço prestado pela Administração Pública é obrigação do Estado e direito do cidadão e, portanto, não devem ser categorizados como serviços voluntários. A prestação voluntária de serviços é restrita à esfera privada e proibida na Administração Pública e aos servidores públicos, a não ser nos casos previstos por lei.
Todo serviço público, seja ele gratuito ou pago, é sempre prestado como dever do Estado e será sempre direito do cidadão, também conforme a lei que determinará quem terá acesso a um determinado serviço ou não. É norma do Direito Público, derivada da assimetria entre Estado e sociedade civil, que ao Estado só cabe fazer aquilo que a lei mandar.
Portanto, todo serviço prestado pelo Estado não será nunca caridade ou benevolência, mas obrigação. Frequentemente confunde-se gratuidade com caridade ou filantropia, assim como é muito comum confundir-se serviços públicos com serviços gratuitos e serviços pagos com serviços privados.
Essas são noções equivocadas e conflituantes com o conceito de cidadania e, por isso, devem ser devidamente esclarecidas. A gratuidade não é constitutiva do serviço público. O sector privado também pode oferecer serviços gratuitos, porém isso não os torna necessariamente públicos.
Interesses Privados e Interesses Colectivos
A distinção entre o público e o privado, a delimitação da fronteira entre essas esferas, a determinação da extensão dos poderes e das prerrogativas do público sobre o privado derivam do reconhecimento da diferença entre interesses privados e interesses colectivos.
Se esses interesses fossem totalmente coincidentes, dificilmente poderíamos admitir a existência do Estado, da Administração Pública, do Direito Público ou do Direito Privado como os conhecemos na actualidade.
A rigor, não haveria nem mesmo a distinção entre público e privado. Se essas distinções existem actualmente, elas devem ser compreendidas no contexto das transformações históricas que viabilizaram as sociedades modernas, onde se verifica maior complexidade na divisão social do trabalho e no sistema de estratificação social12, e a consequente diversidade de interesses e de visões de mundo.
O Estado é, portanto, um artifício de unificação em um mundo orientado pela individualização e crescente diversificação de interesses. Deixado à mercê dessa tendência, os conflitos seriam de tal ordem que afectariam a própria possibilidade da sociabilidade.
Thomas Hobbes (1588-1679) matemático, filósofo e teórico político inglês que publicou a obra Leviatã em 1651, onde defendeu a tese de que os homens em estado natural encontram-se em uma situação de incertezas, onde prepondera a lei do mais forte ou da guerra de todos contra todos (bellum omnia omnes).
Para fugir dessa situação e garantir uma vida de paz e felicidade, os homens estabeleceram por intermédio do pacto social a sociedade civil. Nesse ato, eles transferiram os seus direitos a um soberano ou governo absoluto para protegê-los da arbitrariedade e violência. O governo central (ou Estado) é imaginado por Hobbes, de forma figurativa, como um Leviatã, uma criatura mitológica temida pelas grandes proporções e força.
A Administração Pública no Mundo Contemporâneo
Na década de 1990, palavras como globalização e neoliberalismo passaram a ser insistentemente repetidas nos jornais e nos discursos políticos, sem que se lhes conferisse um conteúdo preciso. De maneira geral, a globalização era invocada para dizer que o mundo havia mudado e que não se podia mais interpretar a realidade social e económica, e intervir nessas esferas, da mesma forma como se fazia até a década de 1970.
O termo neoliberalismo e o adjectivo neoliberal, por sua vez, eram empregados sempre que a intenção era qualificar os defensores da livre iniciativa e da redução do Estado. Em nome da adaptação do Brasil ao mundo globalizado, de um lado havia defensores de reformas nos mais diversos campos, entre eles, o da Administração Pública, entre os quais muitos de orientação realmente neoliberal. E do outro, críticos desse tipo de orientação e defensores da integridade e do papel do Estado.
Outras pessoas leram isto Também:
- Política, Poder e Autoridad
- Despesas públicas em Moçambique
- Golpe de Estado
- Burocracia
- Parlamentarismo
- O que é um regime de governação?
- Ditadura
- A Democracia nos países africanos e em Moçambique
Referências bibliográficas
ALECIAN, Serge & FOUCHER, Dominique. (2001). Guia de Gerenciamento no Sector Público. Rio de Janeiro; Brasília.
ANDERSON, Perry. (1995). Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (org.). Pós Neoliberalismo: As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
BOBBIO, Norberto. (1990) .Estado, Governo, Sociedade: Para uma Teoria Geral da Política. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra,
BOUNDON, R. & BOURRICAUD, F. (2001) Dicionário Crítico de Sociologia. 2. ed. São Paulo: Editora Ática.
BRESSER PEREIRA, Luis Carlos. (19960). Da administração pública burocrática à gerência. In: Revista do Serviço Público. Brasília. ENAP. Volume 120, n. 1, jan.-abr.
FIORI, José Luis. (1995) .Em Busca do Dissenso Perdido: Ensaios Críticos sobre a Festejada Crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight.