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Surgimento das autarquias em Moçambique
No caso moçambicano, cabe ressaltar, inicialmente, que o primeiro governo de orientação socialista instituído em 1975 com a proclamação da independência nacional da colonização portuguesa, adoptou o regime político de democracia popular, conforme os Artigos 1° e 4°, § 5° da Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM, 1975).
“ (…) Esse novo Estado independente consagrou o governo de partido único e o princípio da unidade do poder como os pilares da estruturação do Estado. Fundamentalmente, o sistema não logrou incorporar os diferentes níveis de governo em todo o processo decisório das políticas públicas. As funções do Estado e o seu papel económico e social buscaram a descolonização do Estado e de suas instituições e a construção de estruturas mais modernas e adequadas para consolidar o poder democrático popular”. (IGREJA, 2013).
Essas novas configurações foram especialmente delineadas na revisão constitucional aprovada pela Lei n° 11/78, de 16 de Agosto, e estavam ancoradas no centralismo democrático (PLANK, 1993), que se traduzia na supremacia formal do legislativo (era não eleito directamente pela população e composto apenas por membros do partido no governo, a Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO) face aos demais órgãos estatais.
No entanto, ao longo da década de 1980 o Estado socialista centralizado passou a ser afectado por três problemas principais: uma progressiva erosão da capacidade de recursos fiscais e operacional; ineficácia da burocracia, destituída de autonomia no nível local e de uma estrutura de incentivos para o seu funcionamento que favorecesse níveis elevados de desempenho; e o conflito político-militar iniciado em 1976, que tinha como atores contendores principais o governo de Moçambique dirigido pela FRELIMO e a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), que se estabelecera nas zonas rurais e defendia posturas mais de direita e reivindicava a partilha do poder político no país. As dificuldades fiscais resultaram de uma combinação de factores relacionados, tanto à queda da produtividade da economia e das exportações entre 1976-1984, devido ao fechamento de várias indústrias nacionais (CASTEL-BRANCO, 1994), quanto à retirada de maior parte dos agentes económicos de origem portuguesa, que eram quem assegurava o funcionamento da rede de comercialização rural antes da independência.
Se não fosse pelas crises fiscal e da dívida confrontando tantos países em desenvolvimento nos anos de 1980, juntamente com a escassez das fontes alternativas de financiamento, poucos desses países teriam embarcado em reformas tão amplas. No caso da ineficácia administrativa, ela derivou principalmente da fraca capacitação técnica e de recursos que caracterizava o funcionamento dos entes estatais.
Críticas e o Estabelecimento da Descentralização
É possível identificar três momentos de conjuntura crítica que representaram as grandes transformações realizadas nas instituições a partir de 1990, cujo resultado foi a reconfiguração do poder político e administrativo no Estado moçambicano. A primeira conjuntura crítica está relacionada à aprovação de uma nova constituição (CRM, 1990), que instituiu o modelo de democracia pluripartidária que rompeu com o regime de governo de partido único da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), instituído em 1975.
A primeira abordagem está baseada na descentralização territorial operada através da criação dos municípios, que exercem o seu auto-governo e possuem autonomia administrativa e fiscal. A segunda abordagem está relacionada à desconcentração concretizada pelos órgãos provinciais, através da transferência de responsabilidades do governo central para esses entes locais os quais, não possuem autonomia subnacional e o movimento das relações é do tipo top-down.
Os argumentos apresentados pelos atores políticos da FRELIMO relativamente à realização de mudanças na lei dos municípios, mostravam o interesse por uma reformulação e realinhamento das ideias sobre o carácter da descentralização, no intuído de não prejudicar os interesses e vantagens que já haviam sido constituídos. Entre os governantes e parlamentares desse partido se cristalizaram duas visões opostas. Uma que se posicionava em favor de reformas e descentralização radical do poder e outra era conservadora, interessada em manter a influência e controle das autoridades de nível central sobre os governos locais, atribuindo a estes últimos um reduzido grau de partilha do poder entre os diferentes níveis de governo.
A escolha por medidas de descentralização mais moderadas prevaleceu, influenciada também pela constatação do quadro de resultados obtidos pela REMANO (nas eleições gerais – presidenciais e legislativas de 1994), que mostravam que a oposição possuía um grande apoio do eleitorado em vários distritos do país densamente povoados e maioritariamente rurais. Para o partido FRELIMO no poder, esse quadro de resultados das eleições anteriores (gerais), eventualmente favoreceria a vitória da oposição nas eleições locais (municipais) a serem realizadas nessas regiões, o que representava uma ameaça ao controle de poder político que já vinha sendo exercido dela FRELIMO desde então. Os atores políticos e parlamentares da RENAMO (que não participara da aprovação da lei dos municípios com um carácter mais amplo), demonstravam em seus argumentos que estavam mais interessados numa alteração da lei para conferi-la um carácter mais democrático quanto a sua concepção e aprovação.
Em seus posicionamentos pressionavam para a realização de uma revisão da CRM que permitiria a realização das eleições locais norteadas por um novo quadro legal que acomodaria também propostas oriundas dos partidos da oposição. Essa justificativa, foi acompanhada de outra estratégia política que era considerada vital para a participação da oposição nas eleições locais. A RENAMO se posicionou favorável à realização de eleições locais com abrangência de todas as unidades territoriais previamente propostas, e às suas lideranças interessava ganhar mais tempo para sua preparação, portanto, poder organizar-se melhor para tomar parte na corrida eleitoral e aproveitar as eleições locais para ocupar uma posição forte no espaço político nacional.
Esse contexto político, propiciou em 1996 o surgimento da terceira conjuntura crítica que derivou da emenda constitucional realizada através da Lei n° 9/96, de 22 de novembro, que foi adotada por consenso pelo parlamento. A emenda à constituição acabou estabelecendo o chamado Poder Local (PL) que é representado pelos municípios, que exercem o seu autogoverno e possuem autonomia administrativa e fiscal e têm como órgãos principais os conselhos municipais (executivo) e assembleia municipal (legislativo).
A emenda (à CRM, 1990) estabeleceu os princípios e diretrizes para a reestruturação política e administrativa do Estado, a partir da formalização da descentralização como princípio fundador de sua organização e garantia da autonomia dos municípios, representando uma nova ordem política relativamente à partilha e exercício do poder entre os órgãos centrais do Estado e os entes subnacionais.
As regras e o processo de implementação da municipalização
Conforme discorremos anteriormente, as medidas político-administrativas adotadas em Moçambique no período centralista não apenas estruturaram a constituição de novas instituições no período democrático, mas também conformaram interesses que dificultaram as escolhas em relação ao desenho da política de descentralização, especialmente a partir de 1996. As mudanças operadas protegeram os arranjos institucionais estabelecidos, tendo efeitos de feedback sobre a amplitude das regras de autonomização que têm sido adoptadas.
Tais medidas ajudam a explicar os rumos dados recentemente à implementação da municipalização cada vez mais restritiva, reflectindo o padrão limitado desde a sua constituição prévia. Essa tendência restritiva pode ser observada em decisões políticas sobre a constituição de normas (instituições), transferência de responsabilidade e partilha de recursos fiscais. Desde o início da década de 2000, a municipalização tem sido caracterizada pela introdução de regras que tem evoluído em caminhos que são limitados pelo arcabouço institucional que moldou desde o início um processo de descentralização que favorece a afirmação da dependência dos governos municipais.
Bibliografia
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