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As Condições Políticas Iniciais da Estruturação do Estado em Moçambique
No caso moçambicano, cabe ressaltar, inicialmente, que o primeiro governo de orientação socialista instituído em 1975 com a proclamação da independência nacional da colonização portuguesa, adotou o regime político de democracia popular, conforme os Artigos 1° e 4°, § 5° da Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM, 1975). Esse novo Estado independente consagrou o governo de partido único e o princípio da unidade do poder como os pilares da estruturação do Estado. Fundamentalmente, o sistema não logrou incorporar os diferentes níveis de governo em todo o processo decisório das políticas públicas.
As funções do Estado e o seu papel económico e social buscaram a descolonização do Estado e de suas instituições e a construção de estruturas mais modernas e adequadas para consolidar o poder democrático popular (IGREJA, 2013). Essas novas configurações foram especialmente delineadas na revisão constitucional aprovada pela Lei n° 11/78, de 16 de agosto, e estavam ancoradas no centralismo democrático (PLANK, 1993), que se traduzia na supremacia formal do legislativo (era não eleito directamente pela população e composto apenas por membros do partido no governo, a Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO) face aos demais órgãos estatais.
Contudo, a prática institucional conduziu a uma centralização do poder no executivo. A prática institucional conduziu a um regime de governo de partido dominante do Estado (WEIMER, MACUANE e BUUR, 2012, p. 38) que controlava o legislativo e o judiciário. Níveis Subnacionais, representados por províncias e distritos possuíam reduzida autonomia decisória, e foram relegados à simples implementação das decisões tomadas pela autoridade governamental central.
A FRELIMO se constituiu na “força dirigente do Estado e da sociedade” que organizaria e orientaria os destinos do país de acordo com a ideologia revolucionária difundida na época. O Estado dispunha-se à afirmação dos princípios centralizadores (SOIRI, 1999) baseados no intervencionismo, controle, direcção e orientação do aparelho administrativo estatal. A política de centralização primava também pela ampla supervisão pelo governo central e subordinação hierárquica dos governos subnacionais mediante a implementação de um modelo organizacional altamente burocrático.
Nesse aspecto, uma das principais críticas direcciona-se à prática de desconcentrar responsabilidades sem descentralizar, assim, muitos dos passos locais só podiam ser dados sob o aval de instâncias superiores. Portanto, os padrões de administração centralizada que haviam sido constituídos, limitavam o espírito de iniciativa dos níveis inferiores da administração pública, que eram desprovidos de recursos e capacidades para responder às demandas das comunidades locais.
No campo administrativo, a aprovação do Decreto nº 1/75, de 27 de Julho, que instituiu a organização da administração pública para o aparelho central e das Leis nº 5/78; 6/78; e 7/78 ambas de 22 de Abril, que estabeleceram, respectivamente, a regulamentação das funções dos governos provinciais; a extinção de todos os corpos administrativos coloniais e a criação das estruturas administrativas do Estado com funções executivas; bem como, as Normas de Organização e Direcção do Aparelho de Estado Central (NODAEC) aprovadas pelo Decreto nº 4/81, de 10 de Junho, serviu param a constituição de uma burocracia estatal (central) que era detentora do monopólio de todo o processo decisório. Segundo essas medidas, a eficiência governamental seria resultante da concentração e centralização de todo o poder sobre o processo decisório das políticas públicas à actuação exclusiva dos ministérios e agências nacionais.
As medidas configuraram a racionalização do planejamento governamental de tipo top-down e fortalecimento desigual do poder do executivo nacional em relação ao nível denominado de local, representado pelos governos provinciais e os governos distritais. No caso das políticas públicas, estas eram encaradas como instrumentos de socialização das comunidades (MACAMO e NEUBERT, 2003) em contexto de frágil institucionalização e presença irregular do Estado sobre o conjunto do território nacional, particularmente nas zonas rurais.
Conjunturas Críticas e o Estabelecimento da Descentralização
É possível identificar três momentos de conjuntura crítica que representaram as grandes transformações realizadas nas instituições a partir de 1990, cujo resultado foi a reconfiguração do poder político e administrativo no Estado moçambicano. A primeira conjuntura crítica está relacionada à aprovação de uma nova constituição (CRM, 1990), que instituiu o modelo de democracia pluripartidária que rompeu com o regime de governo de partido único da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), instituído em 1975.
A nova constituição passou a reconhecer oficialmente várias liberdades individuais e colectivas e permitiu a viabilização da Lei n° 7/91, de 23 de Janeiro, sobre à formação e actividade dos partidos políticos que possibilitou a criação de novos partidos no país. Essencialmente, essa lei abriu espaço para o surgimento de novos atores políticos em todo território nacional com a criação de 40 partidos políticos a partir de 1992, destacando-se o PIMO, UD, MONAMO, PT, PADEMO, SOL, FUMO, entre outros. Através da lei dos partidos políticos foram delineadas as condições para o estabelecimento de um sistema multipartidário e um emergente ambiente político mais competitivo e diversificado.
Do ponto de vista administrativo, a constituição permitiu o estabelecimento de uma agenda nacional favorável a mudanças institucionais dentro do Estado. Ela determinou a incorporação de estruturas autónomas no processo de tomada de decisão no nível local, significando uma inovação nos princípios que ordenavam a actuação exclusiva das instâncias superiores, ministérios e agências nacionais quanto ao processo das políticas públicas até então. Ou seja, em termos de inovações nos conteúdos das políticas públicas promovidas há a inclusão de novas áreas de acção no escopo de acção e mudanças na abordagem ou concepção a respeito de políticas. As concepções de um possível modelo de descentralização vieram a ser concretizadas no que se designou de Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL), criado também em 1991.
O PROL favoreceu a apresentação das primeiras ideias sobre a partilha do poder político nas arenas de escalão inferior do Estado. Esse programa de reformas articulou uma tipologia de descentralização que podemos afirmar, está relacionada à adoção de duas abordagens distintas. A primeira abordagem está baseada na descentralização territorial operada através da criação dos municípios, que exercem o seu autogoverno e possuem autonomia administrativa e fiscal. A segunda abordagem está relacionada à desconcentração concretizada pelos órgãos provinciais, através da transferência de responsabilidades do governo central para esses entes locais os quais, não possuem autonomia subnacional e o movimento das relações é do tipo top-down.
Paralelamente, a reforma constitucional e democratização possibilitaram o fim da guerra após as partes conflituantes (governo da FRELIMO e a liderança da RENAMO) subscreverem em Outubro de 1992 o Acordo Geral de Paz (AGP), que se seguiu às negociações (1990-92) realizadas no Mosteiro de Santo Egídio em Roma. O AGP representou o segundo momento crítico de grande relevância para a democratização do sistema político moçambicano e permitiu, por um lado, a estabilização política do país, e por outro lado, assegurou que a RENAMO fosse reintegrada à vida pública constituindo-se em partido político e participasse no espaço de disputa política. A pacificação impulsionou o processo de transição do regime monopartidário para o pluralismo político, possibilitando a realização em Outubro 1994 das primeiras eleições presidenciais e legislativas nas quais a FRELIMO saiu vencedora (obteve 44% dos votos) e a RENAMO (recebeu 38% dos votos).
Entretanto, a institucionalização da reforma do poder político no nível local viria ocorrer somente com a aprovação da lei dos municípios, a Lei n° 3/94, de 13 de Setembro, pela última assembleia popular legislativa dominada regime de partido único da FRELIMO, portanto, antes das primeiras eleições realizadas no país. Essa lei concretizou o modelo de descentralização de tipo municipalização proposto de início no contexto do PROL. Na essência, a Lei n° 3/94 definiu que a municipalização teria um carácter institucional mais amplo contemplando 141 unidades territoriais, correspondentes à 128 distritos (são as subdivisões territoriais abaixo das províncias em Moçambique, sendo constituídos por áreas rurais e urbanas); a cidade capital do país; 10 cidades (capitais de províncias); e mais 2 cidades (Ilha de Moçambique e Maxixe).
O processo Municipalização em Moçambique
A municipalização em Moçambique foi introduzida num contexto de pós-guerra civil e no âmbito das reformas introduzidas pela nova constituição de 1990o processo de municipalização é recente em Moçambique e enquadra-se numa série de reformas políticas que tiveram o seu início com a aprovação da nova Constituição em 1990 e o fim da guerra civil em 1992.
No contexto das transições democráticas nos anos 1990 na África Subsaariana, a municipalização surge como um elemento importante do processo de institucionalização democrática e da melhoria da provisão de serviços públicos a nível local. Partia-se da ideia segundo a qual a descentralização, no geral, e a municipalização, em particular, aumentaria a eficiência das autoridades políticas locais e conduziriam à melhoria da governação, o que, por sua vez, traria serviços públicos em quantidade e qualidade, Contudo, a introdução das reformas de municipalização não foi um processo linear. As reformas traduziam significativamente as dinâmicas políticas do processo político moçambicano, caracterizadas por uma forte correlação de forças protagonizada, essencialmente, pelos antigos beligerantes, nomeadamente a Frelimo e a Renamo.
As regras e o processo de implementação da municipalização
Conforme discorremos anteriormente, as medidas político-administrativas adotadas em Moçambique no período centralista não apenas estruturaram a constituição de novas instituições no período democrático, mas também conformaram interesses que dificultaram as escolhas em relação ao desenho da política de descentralização, especialmente a partir de 1996. As mudanças operadas protegeram os arranjos institucionais estabelecidos, tendo efeitos de feedback sobre a amplitude das regras de autonomização que têm sido adotadas. Tais medidas ajudam a explicar os rumos dados recentemente à implementação da municipalização cada vez mais restritiva, reflectindo o padrão limitado desde a sua constituição prévia.
Essa tendência restritiva pode ser observada em decisões políticas sobre a constituição de normas (instituições), transferência de responsabilidade e partilha de recursos fiscais. Desde o início da década de 2000, a municipalização tem sido caracterizada pela introdução de regras que tem evoluído em caminhos que são limitados pelo arcabouço institucional que moldou desde o início um processo de descentralização que favorece a afirmação da dependência dos governos municipais.
A trajectória desse desenho institucional não rompeu radicalmente com o controle directo dos entes locais municipais pelos governos central e provinciais. O Decreto n° 11/2005, de 25 de Abril, alusivo a regulamentação sobre as competências comuns instituiu os incentivos à coordenação das políticas públicas. Contudo, essa norma reservou somente aos entes da esfera provincial a iniciativa de estabelecimento e funcionamento dos chamados conselhos de coordenação entre os governos provinciais e municipais, atribuindo aos governos municipais apenas prerrogativa para propor temas a serem discutidos nesses encontros de articulação intergovernamental. A conformação do processo de articulação entre as esferas de governo, dada por essa norma, tem propiciado o surgimento de diversos problemas administrativos.
O avança no processo de municipalização
Inicialmente a municipalização estava prevista para abranger a totalidade do território nacional. A municipalização viria a abranger, numa primeira fase, apenas 33 vilas e cidades, na sequência da aprovação da Lei 2/97, referente às autarquias locais, que introduziu o princípio de gradualismo na autorização do País. Neste contexto, gradualismo refere-se não só à autorização gradual do território nacional como também à transferência gradual de funções e competências do Estado central para as autarquias locais (Resolução 40/2012).
O princípio do gradualismo não foi baseado na necessidade de controlo por parte do governo central, mas na necessidade de construir os factores essenciais para a autonomia administrativa, financeira e patrimonial, e à reabilitação das actividades produtivas nas áreas urbanas e rurais, para que possam formar o objectivo e bases para albergarem as funções municipais. Na mesma perspectiva, Alguns posicionamentos sugerem que esta medida adoptada pelo governo fundamenta-se em questões e receios meramente políticos como consequência dos resultados obtidos pelo maior partido da oposição nas eleições gerais presidenciais e parlamentares de 1994, (MACHAVA, 2013)
A introdução deste princípio não foi uma medida pacífica, pois encontrou resistência por parte do maior partido da oposição, a Renamo, que defendia a prevalência da Lei n.º 3/94 que apregoava a instalação dos municípios em todos os distritos em simultâneo e por esse motivo boicotou as primeiras eleições autárquicas não participando nas mesmas. No entanto, o boicote não foi levado a cabo apenas pela Renamo, mas pela maioria dos partidos políticos, tendo registado uma taxa de abstenção de aproximadamente 85%.
Os processos eleitorais locais seguintes, realizados em 2003 e 2008 contaram com a participação da oposição, tendo esta, no entanto, contestado veemente o processo eleitoral de 2008, alegadamente devido à ocorrência de fraudes a favor do Partido do governo. Neste contexto, o poder local foi inicialmente estendido a somente 10% do território nacional, abrangendo cerca de 25% dos moçambicanos sendo que aproximadamente 75% ficaram privados do direito de eleger seus representantes a nível local. Idem
Bibliografia
IGREJA, V. (2013). As Implicações de ressentimentos acumulados e memórias de violência política param a descentralização administrativa em Moçambique: Revista de Estudos Políticos.
PLANK, N. (1993). Aid, debt, and the end of sovereignty: Mozambique and its donors. The Journal of Modern African Studies.
SOIRI, L. (1999) Moçambique: aprender a caminhar com uma bengala emprestada? Ligações entre descentralização e alívio à pobreza. Maastricht: European Centre for Development Policy Management,.
WEIMER, B. (2012). Para uma estratégia de descentralização em Moçambique: mantendo a falta de clareza?: conjunturas, criticas, caminhos, resultados. In: WEIMER, B. (Org.). Moçambique: descentralizar o centralismo: economia política, recursos e resultados. Maputo:
MACAMO,E; NEUBERT, D. (2003). When the post-revolutionary state decentralizes: the reorganization of political structures and administration in Mozambique. Cadernos de Estudos Africanos
FORQUILHA, S. (2015).Democracia e municipalização em Moçambique gradualismo, participação local e serviços básicos. In: Castel-Branco et al. Democracia e municipalização em Moçambique desafios para Moçambique, Maputo, IESE,
MACHAVA, D. de A. F. (2013). Colaboração intermunicipal em Moçambique: o caso da Província de Inhambane. Dissertação de Mestrado em Administração Pública. Universidade do Minho Escola de Economia e Gestão.